Sempre ouvi falar de Fullmetal Alchemist (Hagane no Renkinjutsushi) como um dos melhores e mais populares mangás de todos os tempos, tanto que recebeu não só uma, mas duas adaptações para animes, a primeira exibida originalmente entre 2003 e 2004 com o mesmo título do mangá, e o remake, mais fiel ao mangá, exibido entre 2009 e 2010 com o título Fullmetal Alchemist - Brotherhood (Hagane no Renkinjutsushi - Furumetaru Arukemisuto). Como sugere o título, a franquia trata de alquimia, a protociência que, no mundo real, precedeu a química.
Irmãos Alquimistas
Os protagonistas são os irmãos Edward e Alphonse Elric, que, quando crianças, quebram um tabu ao tentar trazer sua falecida mãe de volta à vida usando alquimia. Não apenas eles falham como, no processo, Edward perde sua perna esquerda e Alphonse quase perde a vida, mas é resgatado pelo irmão, que consegue fixar sua alma a uma armadura vazia, perdendo também seu braço direito ao fazer isso.
Como resultado, a armadura vazia passa a ser o corpo de Alphonse, e Edward tem seu braço e perna substituídos por próteses metálicas, o que lhe renderá a alcunha de Alquimista de Aço (que dá título à franquia) e o aproximará cada vez mais de sua amiga Winry Rockbell, a mecânica responsável por implantar e fazer a manutenção de sua prótese. Os irmãos partem em busca da lendária pedra filosofal, que acreditam que possa restaurar o corpo original de Alphonse e os membros perdidos de Edward.
Não cheguei a ler o mangá, mas, agora que vi o anime Fullmetal Alchemist - Brotherhood, posso confirmar que é um dos melhores animes já feitos! Comecei a vê-lo no ano passado, e acabei interrompendo por algum motivo no episódio quinze, até que consegui retomá-lo em abril deste ano e acabei os 64 episódios já no dia 9 daquele mês, uma quinta-feira, pela Netflix. (o anime também está disponível no Brasil pela plataforma Crunchyroll).
O Mangá e a Autora
O mangá foi publicado em 108 capítulos mensais na revista japonesa Monthly Shonen Gangan, especializada em mangás direcionados ao público jovem masculino, entre agosto de 2001 e junho de 2010, sendo posteriormente compilado em 27 volumes no formato tankobon pela editora e desenvolvedora de videogames Square Enix, conhecida principalmente por suas franquias de jogos Final Fantasy e Dragon Warrior.
A criadora do mangá, Hiromu Arakawa, nasceu e foi criada numa fazenda de gado leiteiro em Hokkaido, e, por isso, de maneira bem-humorada, costuma se desenhar como uma vaca de óculos. Seu trabalho mais recente foi o mangá cômico Silver Spoon (Gin no Saji), que, publicado entre 2011 e 2019, retrata o cotidiano de um aluno de uma escola agrícola, e foi também adaptado para anime. Mas o maior sucesso da mangaká foi sem dúvida Fullmetal Alchemist.
A Primeira Adaptação
Ela mesma ajudou no desenvolvimento inicial da primeira adaptação do mangá para anime pelo estúdio Bones (de Angelic Layer e Darker Than Black), mas, para se dedicar mais ao mangá, que ainda estava em produção, deixou que o estúdio criasse seu próprio final. Com isso, o mangá acabou tendo uma conclusão muito diferente do anime, o que levou o estúdio a produzir o remake. Optei então por ver o remake, mas cheguei a ver os cinco primeiros episódios da primeira adaptação, anos atrás, e também achei muito boa.
A primeira adaptação foi seguida por um longa-metragem de animação chamado Fullmetal Alchemist - The Movie - Conqueror of Shamballa (Hagane no Renkinjutsushi - Shanbara o Yukumono) que foi lançado nos cinemas em 2005 e deu encerramento à sua história. Também não vi esse longa, mas gostei tanto de Fullmetal Alchemist - Brotherhood que é capaz de eu retomar a franquia futuramente para ver tudo que faltou!
O Universo de Fullmetal Alchemist
A franquia é ambientada num universo alternativo com elementos steampunk (como as próteses metálicas de Edward, chamadas de automail), semelhante ao nosso mundo no início do século 20, mas com territórios que, embora remetam a países reais, têm outros nomes, geografia e política.
Entre esses territórios estão Amestris, um país militarista e expansionista que lembra ao mesmo tempo os EUA, a Inglaterra e principalmente a Alemanha, inclusive com um líder chamado de Führer; Drachma, que tem clima ártico, fica ao norte de Amestris e lembra a Rússia com seus trajes típicos; Ishval, um pequeno território religioso e desértico que fica a leste e lembra ao mesmo tempo a Índia e o Oriente Médio como um todo, com habitantes de pele escura, íris vermelhas e cabelos prateados, e que, após ser anexado a Amestris, é arrasado por uma guerra civil; e a distante Xing, uma monarquia que lembra países orientais como o Japão e principalmente a China, possuindo uma forma de alquimia denominada waidanshu (que no mundo real é o nome da alquimia chinesa), diferente da alquimia ocidental.
Não é Magia. É Ciência!
Nesse universo, a alquimia é institucionalizada como uma ciência pelos governos, e de fato funciona como uma ciência, com regras bem definidas, tanto que os alquimistas fazem questão de ressaltar que alquimia não é magia. É ciência! Sua base é a transmutação, que é a manipulação da matéria por meio da troca equivalente, o que significa que, para transmutar um objeto em outro, o alquimista precisa que o objeto original tenha um valor equivalente ao do que ele pretende materializar, obedecendo a duas leis chave: a lei da conservação das massas (um objeto só pode ser transmutado em outro de mesmo peso) e a lei da providência natural (um material só pode ser transmutado em outro com as mesmas propriedades moleculares). Ou seja, não é possível criar algo do nada. Há sempre um preço a ser pago.
Os passos para esse processo são a compreensão da estrutura do material a ser transmutado, a decomposição desse material e, por último, sua recomposição. Isso envolve o uso de um círculo de transmutação, um símbolo composto por formas geométricas variadas, as runas, inseridas dentro ou em torno de um círculo, que aproveita e direciona o fluxo de energia a ser usado no ciclo. Um círculo de transmutação pode ser desenhado com giz, tinta, sangue ou qualquer material; formado por itens posicionados de modo a compor o desenho; gravado permanentemente numa arma, luva, armadura ou qualquer objeto; ou mesmo tatuado no corpo de alguém. Cada tipo de transmutação exige um círculo de transmutação diferente.
Em lugar do círculo de transmutação tradicional, há alquimistas que usam variações em que as runas de transmutação não ficam confinadas a um círculo, como o ishvaliano Scar, que usa uma runa de destruição tatuada ao longo de seu braço esquerdo. E há aqueles como os irmãos Elric, que, durante a tentativa fracassada de reviver sua mãe, foram puxados por Deus para os domínios da Verdade, onde foram expostos a revelações atordoantes antes de serem mutilados como pagamento pela quebra do tabu e pelo próprio conhecimento obtido. O pouco que conseguem reter dessas revelações os torna capazes de usar alquimia apenas batendo as palmas das mãos, um movimento que por si só já forma o círculo necessário para qualquer tipo de transmutação, nesse caso.
Esoterismo Ocidental
A autora claramente pesquisou sobre esoterismo ocidental, pois expõe conceitos e símbolos tirados diretamente do Hermetismo, uma tradição filosófica, religiosa e mágica de origem greco-egípcia, baseada principalmente nos escritos atribuídos a Hermes Trismegisto, que teria sido a encarnação humana dos deuses da sabedoria Hermes (grego) e Thoth (egípcio).
Na visão hermética, Deus é simultaneamente o Tudo e o Um, ou seja, cada indivíduo é uma parte de Deus, que é literalmente o universo em sua totalidade, incluindo não apenas o plano físico mas também o plano mental, uma vez que Deus pode ser visto como sua mente em si. É assim mesmo que Deus se apresenta no anime, assumindo a forma do personagem que o encontra: "Eu sou o que você chama de Mundo, ou então Universo, ou então Deus, ou então a Verdade, ou então Tudo, ou então Um. Eu também sou Você". Essa visão de mundo é bem explicada no episódio doze do anime, aliás.
Segundo o Hermetismo, as três partes da sabedoria do universo são a teurgia (a operação dos deuses), a astrologia (a operação dos astros) e a alquimia (a operação do Sol), e é por ser o patrono desses três saberes que Hermes Trismegisto é chamado assim (Trismegisto vem do latim Trismegistus e significa "aquele que é três vezes grande"). O mangá, porém, e por consequência o anime, jamais usam o termo Hermetismo, e, usando de licença poética, apresentam conceitos da astrologia e principalmente da teurgia como se fosse tudo alquimia.
Esses três objetivos estão presentes no mangá, com a diferença de que, no mundo real, os experimentos feitos na busca pela pedra filosofal não envolviam nada parecido com círculos de transmutação. Em vez disso, envolviam processos semelhantes a qualquer processo químico, o que acabou levando a descobertas científicas como a destilação e a água régia, e ao surgimento da própria química como ciência, quando o misticismo presente na alquimia foi abandonado em favor do método científico. Já no mangá, descobre-se que a pedra filosofal pode ser obtida, sim, através de um círculo de transmutação, porém, nem todos estão dispostos a pagar o alto preço necessário para obtê-la, mesmo que ela permita a seu portador fazer alquimia sem qualquer tipo de círculo de transmutação e até mesmo sem troca equivalente, até certo ponto.
Outra invenção da autora foi relacionar quimeras à alquimia, o que, aliás, combinou bastante com o tema! No mundo real, quimeras são feras da mitologia grega, caracterizadas por um corpo híbrido de dois ou mais animais e pela capacidade de lançar fogo pelas narinas, ou, por extensão, qualquer animal fantástico híbrido de duas ou mais espécies. Já no mangá, é o nome dado a qualquer combinação de dois ou mais animais, incluindo seres humanos, alquimicamente transmutados para formar um só organismo.
Há vários símbolos esotéricos representados no mangá, e um dos mais constantes é o ouroboros, um dragão mordendo a própria cauda, que representa o eterno retorno e aparece no corpo de cada um dos homúnculos, o que faz total sentido, porque eles retornam à vida assim que morrem. É interessante notar que cada homúnculo do mangá representa um dos sete pecados capitais, um conceito que foi repetido recentemente em outro mangá, The Seven Deadly Sins (Nanatsu no Taizai), em que, da mesma forma, cada um dos protagonistas representa um pecado.
Entre os alquimistas mais famosos do mundo real estão o francês Nicolau Flamel, que chegou a aparecer na franquia Harry Potter como personagem, e Philippus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim, mais conhecido por seu pseudônimo Paracelso. Em torno de ambos há lendas sobre terem descoberto a pedra filosofal, e ambos são citados em Fullmetal Alchemist. Paracelso aparece na forma do misterioso pai dos irmãos Elric, que recebe exatamente o nome de Hohenheim.
Nicolau Flamel, por sua vez, aparece na forma do símbolo estampado nas costas do casaco de Edward Elric e no ombro esquerdo da armadura de Alphonse, a Cruz da Serpente, também conhecida como Cruz de Flamel ou simplesmente Flamel, que lembra muito o Caduceu associado a Hermes e, diz a lenda, foi encontrado por Flamel num misterioso livro chamado Abraão, o Judeu, no qual ele aprendeu o segredo da pedra filosofal. Na cruz, as ondulações da serpente em direção à coroa que está no topo representam o caminho a ser percorrido para se chegar a Deus através da Árvore da Vida da Cabala, uma tradição mística judaica geralmente associada ao Hermetismo. Resumindo, pode-se dizer que o símbolo representa a elevação da alma.
Uma outra referência ao Hermetismo está nos Portões da Verdade, por onde os irmãos Elric entram nos domínios da Verdade. Cada alquimista tem seu próprio Portão da Verdade, e cada Portão tem uma figura cravada. A figura do Portão de Edward é justamente a Árvore da Vida Cabalística, conforme desenhada pelo ocultista Robert Fludd.
Já a figura do Portão de Alphonse é um desenho de George Ripley chamado The Marrow of Alchemy.
E, perto do final do mangá, quando um outro personagem entra nos domínios da Verdade, o que vemos em seu Portão é um antigo desenho iniciático da fórmula da pedra filosofal.
O próprio mapa de Amestris é uma referência clara a Malkuth, a sefirot mais baixa da Árvore da Vida, que representa o mundo material. E até nos nomes dos irmãos Elric há referências ao ocultismo, pois vieram de dois ocultistas famosos: Edward Alexander Crowley, mais conhecido como Aleister Crowley, e Alphonse Louis Constant, cujo pseudônimo era Eliphas Lévi. O apelido de Alphonse na série, aliás, é Al, que remete às primeiras letras da palavra alquimia.
Entre os símbolos dispostos em círculos de transmutação, a salamandra, que na alquimia representa o fogo, aparece no círculo estampado nas luvas de Roy Mustang, o Alquimista das Chamas, um oficial da divisão de alquimistas federais das Forças Armadas Amestrinas, chamados pejorativamente de "cães do exército". Edward passa a fazer parte desse grupo achando que isso pode ajudá-lo em sua busca pela pedra filosofal, e é assim que ele e seu irmão acabam se envolvendo nas intrigas políticas do país.
Live-Action, OVAs e um Longa de Animação
Um dia depois de terminar a série, aproveitei para ver o longa-metragem live-action japonês Fullmetal Alchemist, inspirado no mesmo mangá, lançado em 2017 e também disponível na Netflix. O longa até que começa bem. Até a metade é muito bom, e os efeitos especiais são ótimos. O Alphonse está igualzinho ao do anime! Mas da metade em diante o enredo perde todo o sentido. Recomendo apenas como curiosidade.
Vi também, no domingo seguinte, os quatro OVAs de Fullmetal Alchemist - Brotherhood, lançados enquanto a série estava no ar, e o longa de animação Fullmetal Alchemist - The Sacred Star of Milos (Hagane no Renkinjutsushi - Mirosu no Sei-naru Hoshi), lançado nos cinemas japoneses em 2011. Os OVAs são como episódios da série, seguindo exatamente o mesmo estilo, porém apresentando histórias ambientadas fora da cronologia da série. Um deles traz os irmãos Elric interagindo com um alquimista misterioso, outro é focado na relação deles com Winry Rockbell, o terceiro é sobre a juventude de sua mestra Izumi Curtis e o último sobre a juventude de Roy Mustang.
Já o filme apresenta um estilo visual ligeiramente diferente, com um traço mais solto. A diferença mais notável está nos cabelos dos personagens, com pontas arredondadas em lugar das tradicionais pontas afiadas. Me lembrou um pouco o estilo do quadrinista francês Moebius e, até o do animador americano Bill Plympton (figura conhecida dos curtas da MTV e do festival Anima Mundi) em alguns momentos. Tanto os OVAs quanto o longa de 2011 têm histórias originais, apenas inspiradas no cenário do mangá, com diferentes autores, mas são muito bons também. O longa é ambientado num período entre os episódios das série, e introduz alguns personagens novos, com os irmãos Elric visitando um país chamado Creta, que fica a oeste de Amestris e é inspirado principalmente na Espanha.
Obra Prima
Resumindo, Fullmetal Alchemist é mais adulto e pesado do que a média dos shonen, com situações bem tristes e até trágicas, mas também com bastante humor. Esse lado tão humano da obra de Hiromu Arakawa, juntamente com sua preocupação com os detalhes na impecável construção do enredo e do universo ficcional, é o que a torna uma obra prima!
Sua Vez!
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