No dia 24 de março, aos 92 anos, morreu o francês Albert Uderzo, um dos criadores da clássica história em quadrinhos Asterix, uma das minhas HQs favoritas, criada em 1959. Ele era o desenhista. Também francês, René Goscinny, o roteirista, já havia morrido há bastante tempo, em 1977, aos 51 anos, e desde então Uderzo, além de desenhar, também escrevia as HQs do personagem. Esta resenha é em homenagem e agradecimento a Uderzo e, claro, a Goscinny também, pelo legado extraordinário que deixaram para as histórias em quadrinhos!
Asterix
Com personagens extremamente carismáticos, humor genial e fidelidade aos fatos históricos (tanto que há até livros didáticos de História que usam quadros da HQ para ilustrar algumas passagens), Asterix conquistou o mundo todo. O personagem título é inspirado no chefe gaulês Vercingétorix, do povo arverno, que, ao liderar a grande revolta gaulesa contra os romanos entre 53 a.C. e 52 a.C., entrou para a História como um herói da França.
Uma das grandes sacadas era usar caracteres diferentes para as falas de personagens de povos diferentes, para mostrar que estão falando outra língua. Por exemplo, as falas dos godos eram escritas em caracteres góticos, e as dos egípcios eram hieróglifos. Os bretões, por sua vez, usavam adjetivos antes de nomes, como ocorre na língua inglesa: "quente água" em vez de "água quente"!
Embora o foco da série fossem as aventuras da dupla de guerreiros Asterix & Obelix pelo mundo em sua luta contra o poderio de Roma, as cenas ambientadas na pequena aldeia davam um colorido especial às histórias, com habitantes pitorescos como o chefe bonachão Abracurcix, sua esposa autoritária Naftalina, o peixeiro Ordenalfabetix e o bardo desafinado Chatotorix. Sim, os nomes dos personagens, sempre envolvendo trocadilhos, eram outro charme da série!
Eu mesmo gosto tanto das cenas da aldeia que elegi o álbum A Cizânia, lançado em 1970 e ambientado quase inteiramente na aldeia, como o meu favorito. Mas amo todos os álbuns. Todos são excelentes, mantendo sempre a mesma identidade visual e estrutura narrativa. Comecei a colecioná-los quando tinha treze anos, graças aos meus pais, e naquele ano mesmo eu li vorazmente tudo que havia sido lançado até então, quando o álbum mais recente era o 28º, As 1001 Horas de Asterix. Tenho boas lembranças de estar sempre lendo aquelas HQs, mesmo na rua. Anos depois, já na faculdade, vi ser lançado A Rosa e o Gládio, o 29º álbum, que eu logo comprei, desta vez com meu próprio dinheiro. E, a cada novo álbum, era uma felicidade ver que Asterix continuava a ser publicado.
As HQs de Asterix eram publicadas em capítulos na célebre revista Pilote, desde o número um da revista (fundada e conduzida por Goscinny & Uderzo e outros artistas junto com o publicitário e patrono da imprensa François Clauteaux, idealizador do projeto), ou por vezes em jornais como Le Monde e Sud-Ouest, e depois compiladas em álbuns pela editora franco-belga Dargaud. De 1961 a 1979 foram publicados 24 álbuns. O vigésimo-quarto, Astérix entre os Belgas, foi o último escrito por Goscinny.
Sozinho, Uderzo lançou apenas oito álbuns entre 1980 e 2005, não mais pela Dargaud, e sim pela editora Albert René, fundada por ele em 1979. Esses álbuns diferem daqueles feitos em parceria com Goscinny por terem outro estilo de escrita (afinal, é outro roteirista) com um pouco menos de humor e um pouco mais de referências à cultura pop.
Por exemplo, em A Odisseia de Asterix, de 1981, há um druida espião com a cara do ator Sean Connery, numa referência aos filmes de 007, e, no último álbum de Uderzo, Asterix e o Dia em que o Céu Caiu, há até referências a mangás e à Disney. Eu confesso que gosto mais dos álbuns escritos por Goscinny, que, aliás, considero um dos melhores roteiristas de HQs de todos os tempos, lado a lado com Will Eisner, Alan Moore e Neil Gaiman. Mas Uderzo, além de ser um desenhista genial, também tinha ótimas sacadas em seus roteiros. Eram dois gênios.
Outras Obras dos Autores
Asterix, aliás, não foi o único sucesso de Goscinny & Uderzo. Ambos tiveram vários outros trabalhos, tanto juntos quanto em diferentes parcerias ou solo, alguns deles bem famosos também. Citarei a seguir os mais notáveis.
Uderzo começou nos quadrinhos sozinho aos dezoito anos, em 1945, com Les Aventures de Clopinard, uma HQ de humor com traço bem cartunesco sobre um ex-soldado da velha guarda de Napoleão com uma perna de mola e com mais de cem anos de idade.
Em seguida, criou, sob a liderança do editor René Detire, a HQ de humor com temática de aventura medieval Arys Buck et son Épée Magique, publicada no semanário de quadrinhos O.K. do número 28 ao 42, entre 1946 e 1947. O protagonista Arys Buck é um jovem príncipe muito forte que luta contra feiticeiros e monstros com a ajuda de sua espada mágica Arianne e de seu fiel companheiro, o baixinho Cascagnasse, muito parecido fisicamente com Asterix. No final da série, Buck casa-se com a princesa Sogdiane, com quem tem um filho, o príncipe Rollin, que se torna o protagonista do spin-off La Magnifique Aventure du Fils d'Arys Buck - Le Prince Rollin, seguindo o mesmo estilo,
Para o mesmo semanário e ainda no mesmo estilo, mas já mostrando uma evolução no traço, Uderzo criou, em 1948, a HQ Belloy, a princípio desenhando e escrevendo. Em 1950, o belga Jean-Michel Charlier assumiu os roteiros, permanecendo até o fim da série em 1958. O protagonista, Belloy, é dotado de uma quase invulnerabilidade, com músculos que não podem ser perfurados por nenhuma lâmina, sendo apelidado de "cavaleiro sem armadura". Em suas aventuras, é acompanhado por um velho camponês, Père Hoc, seu pai adotivo.
Uderzo conheceu Goscinny em 1951 e, no ano seguinte, a dupla criou João Pistolão, uma HQ de humor sobre um pirata, em sua primeira parceria, esta com apenas quatro álbuns. Um dos personagens da série, o marujo Renezinho, é uma caricatura de Goscinny. Nessa HQ, o estilo de desenho de Uderzo estava entre o cartunesco e o realista, aos poucos se desenvolvendo para um estilo cartunesco mais próximo do que se veria em Asterix.
A segunda parceria da dupla foi Luc Junior, uma HQ de aventura sobre um jovem repórter que viaja pelo mundo acompanhado de um fotógrafo e um cachorro. Criada sob encomenda em 1954 para ser algo semelhante à seminal HQ belga Tintin, a série teve sete álbuns produzidos pela dupla, sendo continuada em seguida pelo belga Greg, totalizando 22 edições.
A terceira parceria da dupla foi Humpá-Pá, uma HQ de humor sobre um indígena norte-americano às voltas com um aristocrata francês (que, por usar peruca, é chamado por ele de "escalpo duplo"), com cinco álbuns lançados entre 1958 e 1962. O personagem foi na verdade o primeiro a ser criado pela dupla, mas levou anos para ser publicado. Os autores decidiram finalizar Humpá-Pá para se dedicarem mais a Asterix, sua série mais bem-sucedida.
Em 1959, mesmo ano da criação de Asterix, Uderzo, numa segunda parceria com o roteirista Jean-Michel Charlier, criou As Aventuras de Tanguy e Laverdure, inicialmente intitulada Michel Tanguy, uma sofisticada HQ de aviação sobre dois pilotos da Força Aérea Francesa, em que, mostrando sua versatilidade, usava um traço bem mais realista. Lançada na Pilote, a HQ teve oito álbuns publicados entre 1961 e 1967 com desenhos de Uderzo, sendo continuada a seguir por Charlier com outros desenhistas, totalizando 25 álbuns até sua morte em 1989, com mais álbuns sendo lançados até hoje por outros autores. Tanguy e Laverdure tiveram vários crossovers com Buck Danny, outro personagem aviador franco-belga, vindo da HQ que leva seu nome. Também ganharam uma série de TV exibida na França entre 1967 e 1969 com o título Les Chevaliers du Ciel, e, em 2005, um filme com esse mesmo título original, que no Brasil foi chamado de Os Cavaleiros do Ar (dirigido por Gérard Pirès).
Goscinny, por sua vez, escreveu a melhor fase de Lucky Luke, de 1957 até sua morte, em parceria com o desenhista belga Morris, que criou o personagem em 1946. Lucky Luke é uma HQ de humor sobre um cowboy que dispara mais rápido do que a própria sombra. Antes de Goscinny, Morris trabalhava sozinho, e depois continuou a série com outros roteiristas, chegando a lançar um spin-off, Rantanplan (sobre o cachorro mais burro do Oeste). Seu estilo de desenho, no começo, era bem arredondado, com forte influência de Walt Disney, mas logo mudou bastante. Muitos dos personagens de Lucky Luke eram caricaturas de atores famosos de Hollywood. A série continuou mesmo depois da morte de Morris em 2001, com outros autores, tendo hoje 81 álbuns no total. Foi adaptada para animações, games e vários filmes, incluindo um dirigido e estrelado em 1991 pelo italiano Terence Hill (conhecido por suas comédias de ação e faroestes cômicos), Lucky Luke, que rendeu uma continuação no mesmo ano, Lucky Luke 2, e, no ano seguinte, uma série de TV com o mesmo ator.
Já em parceria com o desenhista francês Jean Tabary, Goscinny criou, em 1962, Iznogud, outra HQ de humor muito bem-sucedida, sobre um grão-vizir ardiloso que sonha em ser "califa no lugar do califa", conforme se lia na tradução para o português, ou "sultão no lugar do sultão", conforme se ouvia na dublagem da série animada de 1995 inspirada na HQ). O personagem ganhou um videogame em 1987 e, em 2005, um filme live-action intitulado Iznogoud - Calife à la Place du Calife (dirigido por Patrick Braoudé), que no Brasil foi chamado de Iznogoud. Tabary continuou a série de quadrinhos sozinho até 2004, completando 27 álbuns, sendo os catorze primeiros escritos por Goscinny, cada qual com várias histórias curtas, e os posteriores cada qual com uma história longa. Seu filho Nicolas Tabary assumiu os desenhos em seguida, e já lançou três álbuns, com roteiristas variados. Jean Tabary morreu em 2011.
Goscinny escreveu também a série de livros infantis O Pequeno Nicolau, lançados de 1956 a 1965 em parceria com o ilustrador francês Jean-Jacques Sempé. Narrada pelo personagem título, a série retrata com muito humor a vida das crianças francesas da época. Inicialmente uma história em quadrinhos, foi logo transformada em literatura porque Sempé não se sentia à vontade trabalhando com quadrinhos. Na HQ, Goscinny usava o pseudônimo Agostini. A série rendeu um filme, O Pequeno Nicolau (Le Petit Nicolas, de 2009), e sua continuação As Férias do Pequeno Nicolau (Les Vacances du Petit Nicolas, de 2014), ambos dirigidos por Laurent Tirard, além de uma série animada lançada em 2009.
As Animações de Asterix
Asterix também foi adaptado para animações, a maioria inspirada em algum álbum específico. O único longa-metragem de animação com roteiro totalmente original foi Os Doze Trabalhos de Asterix (Les Douze Travaux d'Astérix), de 1974, que, dirigido pelos próprios Goscinny & Uderzo em parceria com Pierre Watrin, marcou a fundação da produtora Studios Idéfix, fundada pela dupla de quadrinistas, e posteriormente foi adaptado em um álbum ilustrado com imagens da própria animação. Os dois últimos longas, Asterix e o Domínio dos Deuses (Astérix - Le Domaine des Dieux, de 2015) e sua continuação Asterix e o Segredo da Poção Mágica (Astérix - Le Secret de la Potion Magique, de 2018) foram produzidos em animação 3D, com grande qualidade.
Os Filmes de Asterix
Houve ainda quatro filmes live-action, a começar pela superprodução francesa Asterix e Obelix contra César (Astérix et Obélix contre César, de 1999), dirigida por Claude Zidi, com Christian Clavier como Asterix, Gérard Depardieu como Obelix e o italiano Roberto Benigni como o governador romano Tullius Detritus (o vilão de A Cizânia, que na versão em português da HQ foi chamado de Caius Detritus). A continuação, Asterix e Obelix - Missão Cleópatra (Astérix et Obélix - Mission Cléopâtre, de 2002), de Alain Chabat, manteve o elenco principal com o acréscimo de Monica Bellucci como Cleópatra e com o próprio diretor substituindo Gottfried John no papel de Júlio César.
Asterix nos Jogos Olímpicos (Astérix aux Jeux Olympiques, de 2008), de Frédéric Forestier e Thomas Langmann, teve Clovis Cornillac substituindo Clavier como Asterix, Alain Delon como Júlio César e participações especiais de vários esportistas, como Michael Schumacher e Zinedine Zidane. Já Asterix e Obelix - A Serviço de sua Majestade (Astérix et Obélix - Au Service de Sa Majesté, de 2012), de Laurent Tirard, teve Édouard Baer como Asterix e Fabrice Luchini como César.
Outros Álbuns e Outras Mídias
Além de tudo isso, Asterix teve gamebooks, boardgames, videogames, discos de vinil (incluindo um de 1967 intitulado Le Menhir d'Or, que, com música do compositor Gérard Calvi, vinha acompanhado de um livro ilustrado pelo próprio Uderzo com uma história inédita escrita por Goscinny) e até um parque temático, o Parc Astérix, fundado em 1989 nas proximidades de Paris e ainda hoje um dos lugares mais visitados da França.
Ainda dentro da coleção oficial de álbuns de Asterix, em 2003, foi lançado Asterix e a Volta às Aulas, uma compilação de histórias curtas de Goscinny & Uderzo mais quatro histórias inéditas. Em 2009, O Aniversário de Asterix e Obelix - O Livro de Ouro comemorou os 50 anos da série com uma outra compilação de histórias curtas de Goscinny & Uderzo, amarradas por uma história introdutória de Uderzo.
Houve alguns especiais fora da coleção, incluindo Como Obelix caiu no Caldeirão do Druida Quando era Pequeno (com texto original de Goscinny e ilustrações completadas 24 anos mais tarde por Uderzo) e Asterix e seus Amigos (uma homenagem aos 80 anos de Uderzo, formado por 34 histórias curtas produzidas cada qual por um artista diferente, como o cartunista chileno Vicar, da Disney; o desenhista britânico David Lloyd, da graphic novel V de Vingança; e até o italiano Milo Manara, especialista em HQs eróticas).
Em 2014, no primeiro festival de quadrinhos Concile à Bulles, realizado em Bruxelas, foi distribuído um álbum de homenagem a Asterix com mais HQs de artistas variados, incluindo o desenhista brasileiro Ricardo Manhães, que, ao lado do roteirista Gian Danton, é autor da HQ Turma da Tribo, que, aliás, bebe muito da fonte da HQ francesa.
O especial mais recente de Asterix, O Menir de Ouro (uma adaptação da história do disco de vinil citado acima) foi anunciado em abril de 2020 para ser lançado em outubro e, supervisionado por Uderzo, acabou sendo a última participação do autor na franquia.
Os Novos Autores
Apesar da ausência de Goscinny & Uderzo, Asterix continuará existindo, é claro. Desde 2013, o roteirista Jean-Yves Ferri e o desenhista Didier Conrad trabalham em novas HQs da série, e já lançaram quatro álbuns: Asterix entre os Pictos, seguindo a tradição de histórias em que o personagem visita uma cultura estrangeira (desta vez os escoceses, que na época eram conhecidos como pictos); O Papiro de César, de 2015; Asterix e a Transitálica, de 2017, em que, por acaso, há um corredor romano mascarado chamado Coronavírus; e A Filha de Vercingétorix, de 2019, em que o destaque é a presença da guerreira adolescente Adrenalina. Eles continuarão o legado dos criadores.
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